Crônica impossível

– Já pensei em fazer risóles com leite de cabrita…
Ouvi essa pérola durante uma excursão, onde a maioria dos passageiros se conhecia de longa data, portanto, não tardou para que a conversa pendesse pro lado do humor. O fato da pessoa, naquela situação, revelar sua fantasia gastronômica não me surpreendeu; mas sim o que outra disse, na sequência:
– Ouviu isso? Risóles com leite de cabrita! Isso dá uma crônica.
Não, não dá. Imagina a quantidade de bobagens necessárias para encher esse espaço no jornal com um assunto assim, digamos, exótico. Teria que formular teorias desde a possibilidade da receita funcionar, até a expectativa da mesma ser apresentada no programa da Ana Maria Braga. Não iria ficar boa. Digo a crônica, pois a receita, essa não sei dizer.
Não é a primeira vez que alguém sugere assunto, e isso devo considerar como um ponto positivo; quase um elogio. O desejo de cooperar com o escritor pode revelar leitores assíduos; pois esses conhecem a temática costumeira que o mesmo aborda; sabem seu estilo e querem abrir o jornal pra ler um texto onde possam sentir que ali, naquelas linhas, tem um dedo seu. “Precisamos conversar sobre isso”, “você poderia escrever sobre aquilo” são expressões de colaboração, acima de tudo. Igualmente feliz fica o cronista quando recebe mensagens de apoio por parte de pessoas com as quais nem tem tanto contato assim, mas que indiretamente sentem-se próximos do escritor graças aquele texto semanal no jornal. Particularmente, fiquei alegre quando uma pessoa confessou não mais abrir o jornal pelo fim – pra ler as páginas policiais primeiro. Agora, revelou-me, começa pela capa, para iniciar com as crônicas. Esse retorno que os escritores recebem de seus leitores, que tem o nome gringo de feedback, é essencial para termos certeza que a crônica está no caminho certo. A expressão que melhor resume isso é “é bem assim mesmo”. Isso significa que o cronista conseguiu traduzir em palavras a sua percepção sobre algum aspecto do cotidiano, e essa percepção é a mesma do leitor. Por exemplo, poderia escrever sobre as excursões. Seus contratempos, os motoristas que escolhem mal o caminho, os banheiros chacoalhando, as listas de chamada, o trote com os que dormem, as piadas, enfim, aquilo que tem em toda excursão, pois quem foi em uma, foi em todas. O cronista não escreve sobre ficção; ele sempre vai falar da realidade, mesmo que, para isso, precise escrever usando metáforas, tipo contos de fadas.
Escrever crônica não é tão impossível quanto tirar leite de pedra, mas tirar uma crônica de leite de cabrita, aí já é demais.

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