Todo final de ano nos alimentamos de passado e fazemos a tradicional retrospectiva. Para os planos futuros e resoluções do ano novo: esperança e uma enorme lista que vai ficar na gaveta até o próximo dezembro. Para o que deu errado no ano morto, a famosa frase: “Tudo passa, até a uva passa. Não! A uva passa é eterna. Como um zumbi do mundo vegetal, sempre terá uma ou outra rodeando algum prato e, na época de Natal, saem de suas tumbas em bando.
O ano, o show do Roberto Carlos, a música “Então é Natal” com a Simone, o Despacito, tudo isso um dia, (temos fé) vai passar, mas a uva estará te esperando no arroz, na farofa, na salada, enfiada no peru, espetada em fileirinhas no lombo, nas saladas e no panetone. Até o fim dos tempos. Após o apocalipse nuclear sobreviverão as baratas e o efeito estufa transformará todas as uvas do mundo em passas. As baratas viverão um eterno Natal nuclear, se alimentarão das uvas e terão um fluxo intestinal redondinho.
Junto com a uva, vem a polêmica sazonal entre os que gostam e os que a odeiam, que também será eterna enquanto houver Natais. Nenhuma novidade, tudo vira polêmica depois que as opiniões ganharam seus democráticos minutos de fama. Fiquei imaginando por que essa briga com a uva passa e não com outros grãos e alimentos que também têm simbolismos. A lentilha, o arroz, a romã, figos, tâmaras e tantos outros alimentos que aparecem à mesa em ocasiões especiais.
A diferença é que todos esses alimentos são comportados, ficam nos seus lugares, cumprem seus ritos sociais. A uva passa não! É promíscua, se mistura com vegetais e carnes, invade a farofa e o arroz, não se limita à sua tigelinha junto com os outros complementos da sua comunidade.
A uva, em sua defesa, diz que é democrática, que é do povo, apesar de sua origem nobre. Os perus, lombos e até, veja só, a farofa, são classe média metida a besta. Acham que são novos ricos e não gostam de dividir seus espaços nas finas travessas decoradas. Os pêssegos, figos e fios de ovos, tudo bem, são serviçais que ajudam na estética, mas a uva? Aquela coisa escura e enrugada? Olha a melancia, que exemplo. Apesar de estar com sobrepeso e se vestir sem elegância, fica lá, na dela.
A uva é polêmica por essa desagradável mania de não se colocar no seu lugar, e está sendo uma péssima influência, as frutas cristalizadas estão começando a ficar bem passadinhas.
A passa é como o comportamento especialista em tudo, que está sempre opinando sobre todos os assuntos nas caixas de comentários de notícias e nas redes sociais. O comportamento uva passa se mete nas travessas da arte, nas bandejas da política, da física quântica, psicologia, culinária e tudo mais. Pode ser uma notícia falsa ou uma matéria não lida, lá está “o uva passa”, exibindo suas rugas de conhecimento e certezas cristalizadas. Que fase! Por favor, que passe!