“ …e outra coisa que te digo pra ti, ele deveria ter morrido vivo…”
Foi a primeira frase que ouvi ao entrar no bar, vinda de uma mesa onde dois homens e várias garrafas vazias conversavam. Sentei-me perto. Quando encontramos uma pérola, sempre queremos garimpar outras.
“…ficar entrevado em uma cama é o que aquele falcatrua merecia. Morrer vivo! Ficar penando. Mas não! Morreu tranquilo, dormindo. Como é que a gente se vinga de um morto? Não tem justiça nesse mundo. Nem no outro…”
Comecei a anotar. O homem magro, muito falante, estava na fase filosófica da bebedeira, isso sempre rende bom conteúdo. Na sua frente, atrás do balde que mantinha gelados os recipientes de suco filosófico, o homem gordo, esparramado na cadeira, parecia sonolento. Com a cabeça inclinada para frente, descansava o peso sobre o peito, evidenciando suas papadas. Parecia ter três queixos.
“…mas é assim mesmo! Hoje todo mundo acha que ele foi o cara. Pra quem não o conhecia direito, era um exemplo de sucesso, um cara bom. Ele sabia se vender, era um pavão. Mas eu vi o outro lado. Eu tenho um talento, ninguém me engana.”
Tomou mais um longo gole enquanto o homem de três queixos concordava, balançando lentamente a cabeça.
“…O pavão é um bicho bonito, né? Todo mundo adora ver suas penas e cores. Mas tu já viu os pés do pavão? É o pé mais feio do reino animal. Sujo, cheio de escamas e bolotas, umas unhas desse tamanho. O pavão hipnotiza as pessoas com suas plumas, para que não olhem pros seus pés…”
O Sr. Três Queixos continuava com seu letárgico molejo afirmativo.
“…mas eu olho! Quando conheço alguém, a primeira coisa que olho são os pés! O cara pode vir com terno importado, camisa de grife, mas é no pé que a gente vê quem é!”
O homem magro chama o garçom e manda baixar mais duas. O Sr. Três Queixos, num sobressalto, diz que pode ser só uma, para ele já está de bom tamanho, tem compromisso amanhã.
“…Deixa de ser fresco! Toma mais uma aí! Garçom! Duas!… Se o cara não cuida dos sapatos, é um pé rapado. Um pavão, que comprou o terno a prestação e não teve dinheiro pra comprar um calçado decente. E se os sapatos estão sujos e mal cuidados, é um relaxado, falso. Só quer impressionar. Quem não cuida da base, do alicerce, não merece confiança. Tudo que tem em cima não é sólido. Eu converso com os pés das pessoas, e nunca me engano.”
O Sr Três Queixos disse que precisava ir ao banheiro e colocou seus belos e brilhantes sapatos em uma apressada marcha, sumindo no corredor. Passou o tempo de esvaziar uma das garrafas. O filósofo recebeu uma mensagem no celular. Como imaginei, Sr. Três Queixos não voltaria mais. O homem magro começou a olhar em volta, à procura de um novo interlocutor. Os garçons se afastaram. Decidi me fazer disponível. Estava paciente e muitos personagens e histórias poderiam surgir de um papo-cabeça de boteco, com uma figura tão cheia de certezas e técnicas heterodoxas de estudos antropológicos. O homem magro voltou-se para mim, respondi com um discreto cumprimento. Ele olhou para meus pés. Continuou procurando.