Entrevista

Você é tão bonita e jovem. Um anjo. Por que não mandaram um velho sábio? Um arrogante até. Eu iria preferir. Eu gosto de quebrar egos. Gosto de ver como saem cambaleantes e murchos depois de terem comigo. Acho que mandaram você para eu pegar leve, falar coisas aceitáveis. Uma cicatriz cairia bem nesse seu rostinho, daria um aspecto mais humano. Talvez você saia daqui com uma.
Se encaixar perfeitamente ao universo? Não. Não é para mim. Fazer parte de algo maior, ser uma gota no oceano? Não, obrigado. Sonhar com um mundo perfeito? Paraíso? Não! Não quero muletas, sou capaz de andar.
Aceitar verdades prontas, engolir fast food ideológico, doutrinas requentadas? Passo! Tenho dentes. Gosto de mastigar. Também não faço cerimônia, vomito se me for indigesto.
Ser um animal adestrado, guiado por um pastor? Não, mocinha! Meus instintos me conduzem, quer conhecê-los?
Sentir dor? Sim, isso me satisfaz. É só quando a dor me fala que busco a cura. Anestésicos só uso para a cirurgia, nunca para a fuga.
Acham que sou mau, coitados, eles não sabem o que é a maldade, eles a seguem e nem percebem. A maldade os escraviza em uma cela de ouro, engorda-os em pastos de um paraíso prometido, nunca visto, nunca sabido. Ovelhas que ganham o conforto morno da promessa e se entregam, em rebanho. Eu não escravizo, não iludo, não prometo. Minhas palavras são duras, têm que ser, para quebrar correntes.
Outro dia assisti um seriado, um personagem, desprezível como eu, disse: “O problema não é o mal, é o bem. Se o bem não existisse, quem se importaria?” Lembrei do velho safado Freud: “Não é o mal, mas o bem que alimenta a culpa.”
Você sente culpa, mocinha? Se tivesse um pouco de maldade, elas seriam mais digestas, algumas sumiriam, garanto. Se quiser, posso lhe dar, pode pegar aqui, direto das minhas veias.
Sim! A culpa é útil. Faz nos arrependermos das injustiças que cometemos, concordo com você. Mas você acha que devemos culpa a um menu de pecados que nos empurraram goela abaixo? Não basta ganhar a culpa e dar o perdão pelo que se vê nos olhos do outro?
Eu lhe digo, mocinha, o bem dá de graça os pecados para vender perdões, e eles custam caro, e estão nas mãos de escolhidos mercadores.
Se não devemos ser bons e solidários? Não disse isso. Eu disse que não há bondade na ilusão e na dependência. Veja quanto tempo aquele rapaz perdeu, torturando-se, pois você, por pena, não esmagou suas esperanças. Quantas noites esse seu rosto de anjo o assombrou até que ele mesmo teve que estrangular o sentimento que o consumia? Sua bondade foi muito má.
É uma cicatriz que estou vendo surgir aí?

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