A marca d’água da negligência

A histórica enchente que assolou o Rio Grande do Sul, em maio do ano passado, deixou cicatrizes profundas no Vale do Caí. O trauma social e econômico se impõe como um lembrete cruel da vulnerabilidade frente a eventos climáticos extremos. No entanto, a magnitude deste desastre não pode ofuscar a percepção de que a vulnerabilidade não reside apenas na força da natureza, mas também na insuficiência de ações governamentais.

Face à escala sem precedentes da catástrofe, a expectativa natural era de uma resposta governamental coordenada e proativa na prevenção de futuras ocorrências. No entanto, a realidade observada aponta para uma lacuna preocupante: a aparente ausência de projetos concretos ou obras estruturais por parte dos governos federal e estadual com o objetivo claro de mitigar os impactos das recorrentes cheias do Rio Caí.

A situação no âmbito municipal adiciona camadas a essa preocupação. A efetividade da resposta a uma cheia começa muito antes da água subir. Um avanço “pouco” significativo no desentupimento de bueiros e galerias de esgoto acende um sinal de alerta. A manutenção básica da infraestrutura de drenagem urbana é vital para a capacidade de escoamento da água e para minimizar o impacto das inundações locais, mesmo aquelas não diretamente ligadas à calha principal do rio. Um sistema de drenagem deficiente agrava a situação, tornando as áreas urbanas ainda mais suscetíveis a alagamentos rápidos e destrutivos.

Ademais, a ausência de ações estratégicas de inteligência e informação para fornecer prognósticos mais precisos sobre a evolução das cheias é um ponto crítico na gestão de risco. Em tempos de crise, a informação é poder – o poder de salvar vidas, de proteger bens, de tomar decisões antecipadas que podem reduzir drasticamente o impacto do desastre.

Sistemas de monitoramento integrados, modelagem hidrológica avançada e canais de comunicação eficientes e, acima de tudo, com informações objetivas e precisas são ferramentas essenciais. Mas, não estão operando no nível necessário para as comunidades atingidas. Sem prognósticos precisos, a população e as próprias autoridades locais ficam à mercê da imprevisibilidade, reagindo em vez de se prepararem.
A tragédia de 2024 deve ser um ponto de inflexão. A marca d’água deixada pela enchente não é apenas um registro do nível que a água atingiu, mas também um símbolo da altura que a negligência e a falta de planejamento alcançaram em todos os níveis governamentais.

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