Era uma vez 1941

Eu nasci quase vinte anos depois da enchente de 1941. Em todo o mundo, naquele ano, devem ter acontecido eventos de todas as espécies que foram importantes para a cultura, Ciência, estilo de vida, tecnologia, enfim, mas que passaram desapercebidos para quem só nasceria muito depois. A enchente de 41, não. Tratava-se de um recorde nunca batido e, por isso, jamais saiu das memórias dos mais antigos e sempre avivado por matérias jornalísticas, técnico-científicas ou educacionais. Como a pandemia da gripe espanhola até 2020, quando surgiu a Covid-19. Como os mil gols de Pelé. Como Nádia Comaneci. Se não lhes suplantam seus recordes, sempre serão a referência para todos que vierem depois.

Então, desde que me percebo como “gente”, sei da história da enchente de 1941, ainda que não testemunha ocular. Por outro lado, muito mais conhecemos dos efeitos da grande inundação sobre a capital, Porto Alegre, do que da nossa própria cidade, cuja tradição aos mais novos se dá mais pela oralidade do que por documentos da época.

Quando fui pelas primeiras vezes à Porto Alegre, os ônibus da Viação Montenegro ainda adentravam a capital pela Avenida Farrapos. Tinha curiosidade de ver o Rio Guaíba, mas não conseguia. Depois, passou-se a invadir a capital pela Avenida Castelo Branco e, se o tiro fosse mais longo do que o centro, toma-se a Avenida Mauá. Via-se o Guaíba mais distante durante o trajeto pela Castelo. Quando havia possibilidade de se ver o rio mais de perto, a partir da Mauá, um muro de três metros de altura, e outros três metros enterrados, se erguia, obliterando a visão de curiosos olhos interioranos.

Havia uma nobre razão para aquele elefante branco estar erguido ali. A enchente de 1941. Lição aprendida a duras penas, não se poderia – por inação – permitir que outra daquelas cheias colocasse o centro e os bairros mais vulneráveis à mercê dos caprichos da natureza. Natureza está aí para ser dominada, retida em seus domínios, suas calhas, seus taludes. E se não forem suficientes, elevam-se muros de contenção. Com o passar dos anos e a falta de uma tragédia climática de dimensões diluvianas, um movimento político-dema-ecológico que visa devolver o rio e sua bela visão à cidade, entregou-se à pregação pela derrubada do muro da Mauá, que haveria de cair como o de Berlim, por falta de propósito defensável (um separava irmãos; outro, a cidade do seu rio). Podem haver outras soluções mais estéticas do que um muro para conter cheias, mas elas devem estar funcionais antes da troca.

A desídia de governos com a manutenção das comportas do muro da Mauá ao longo das décadas, não se manifestou em novembro último quando uma das maiores enchentes desde 1941, embora ainda bem menor que aquela, foi contida fora da cidade e não causou grandes perdas. Parecia, então, que a Capital estava segura; e voltaram-se os gestores para as comezinhas atividades que os ocupam em gabinetes.

E veio abril, e vieram chuvas abundantes, e veio maio. E veio enchente maior que a de 1941. E as comportas se curvaram ante a colossal pressão das águas contra suas chapas de aço. E o resultado da tragédia ficamos sabendo um pouco a cada dia que passa.

Diante de tamanha catástrofe, que não se restringiu apenas à Capital, mas a mais de 80% das cidades gaúchas, não posso imaginar que daqui pra frente as coisas possam continuar igual, sem reação do povo votante. Primeiro, entender que a natureza deve ser respeitada e não dominada. Não precisaríamos de obras faraônicas para contenção das enchentes se as cidades estivessem afastadas das planícies de inundação. Fomos colonizados a partir dos rios, sabemos, e às margens desses se instalaram nossas cidades. Mas já houve tempo suficiente para nos mudarmos. Se não redesenharmos as cidades a partir de agora, poderá demorar muitos anos, ou não, mas virá maiores cheias do que a de 1941. Digo: maiores do que a de 2024.
O homem não tem paciência para resultados a longo prazo, mas o diabo tem.

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