E o Tempo Levou

Passou-se um ano. Das calçadas encardidas pelo barro, das memórias estendidas nas cercas tortas como roupas encharcadas, da água que subiu com a pressa de quem não tem culpa. Um ano da enchente que marcou o Rio Grande do Sul – no corpo e na alma – com uma cicatriz esculpida pela invencível força das torrentes pluviais e fluviais. Montenegro — aquela cidade a quem os originários ibiraiaras chamavam de “caminho do rio”, tornou-se, ela própria, um rio enorme e disforme, sem limites, sem condições de apontar outros caminhos. O caos, o desepero, a vida desarrumada, a rotina trocada pelo completo estado de necessidade de sobrevivência imediata. Parece que foi ontem. Parece que foi há tanto tempo! Tempo. Tempo cronológico, tempo climático. Qual deles nos trairá outra vez, primeiro?


Quando o sol volta a bater sobre as telhas novas e os comércios reabrem com o cheiro de pão quente ou de tecido virgem disfarçando o odor pútrido da lama, não é difícil que vida retome seu sentido ordinário. Mas quem perdeu tudo – e, às vezes, “tudo” é tão pouco! – haverá de não esquecer o insólito maio de 2024. Quem ficou sem casa, sem vizinho, sem bicho, lembra-se de cada centímetro de água que somava-se ao caudal que lhe afogaria a esperança de que tudo seria só um susto, “pois aqui em casa nunca antes entrou água”. São estes os que, agora, se assustam até com chuva fina. Um trauma não se compõe apenas de lembranças; mora nos escombros úmidos das mentes em pânico.

Passou-se um ano. O tempo cronológico pode afastar a imperiosidade de se fazer alguma coisa para que o tempo cronológico não se torne useiro e vezeiro em desfazer o que a engenharia humana constrói para alimantar sonhos de vidas.


Governos empilharam promessas como sacos de areia: mitigatórias, paliativas, tépidas como água de banheira. Falou-se em dragagem de rios e canais, em reestruturação, em mapas de risco. Mas em muitos cantos, as ações voltaram à normalidade dos gabinetes. Pouco se viu de concreto (peço-lhes vênia para o duplo sentido).


E aí, a pergunta do milhão: pode acontecer de novo? A resposta é curta e dura como catre de penitenciária: sim. A natureza não firma acordos com gabinetes. Enquanto o clima se embrutece e os ciclos climáticos loqueiam, a chuva ganha dentes. E onde a prevenção falha, o desastre volta como visita indesejada que conhece o caminho.


Fala-se muito da resiliência do povo gaúcho, mas eu me pergunto se isso é mesmo virtude. Qual a medida de resiliência aceitável para que não se torne uma outra coisa. Estoicismo, por exemplo. O estoicismo carrega o peso da aceitação. O estóico aceita serenamente o destino. Como aquele cavalo que foi parar no telhado. Quieto, absurdo, impassível. Um totem de uma tragédia sem lógica. O cavalo não reclamou. Tampouco filosofou sobre a vida. Ficou. E isso, ao mesmo tempo, é comovente e alarmante. Porque há algo de perigoso em naturalizar o surreal. Um cavalo no telhado não deveria ser um ícone da resistência, mas um alerta do absurdo. O cavalo caramelo se comportou estoicamente e não com resiliência.


Enquanto medidas efetivas para minimização dos efeitos das mudanças climáticas não passarem de conversas dos gabinetes de todas as esferas governamentais, estaremos como o cavalo: imóveis, equilibrando-nos provisoriamente sobre frágeis telhados — lembrando que, por vezes, suportar tudo em silêncio não é virtude; é desespero com nome bonito: resiliência.

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