Fazia frio quando um grupo de jovens chegou à ruela daquela cidade, onde as sombras dos prédios de concreto e ferro gelavam mais ainda o solo por onde se estendiam. Eles eram de uma ONG e ajudavam na distribuição de sopa, como outros alimentos e cobertores para pessoas em situação de rua.
Quando um dos homens naquela triste situação, enrolado em seu cobertor surrado, viu aqueles voluntários, seus olhos se encheram de brilho. “Aqui, meu amigo, para lhe esquentar um pouco, nesse dia frio”, disse um dos jovens, entregando a ele a vasilha com a sopa e mais um cobertor enrolado. “Muito obrigado, moço”, ele disse, “Obrigado, Deus”, finalizou.
De súbito, outro dos jovens que estava junto, fechou a cara e se indignou muito. “Obrigado, deus?”, ele rosnou. “Um monte de gente se juntou para fazer a sopa, doar os cobertores e vir aqui entregar. Não foi deus, foram pessoas!”, cuspiu ele. “Você não crê em Deus. Está tudo bem”, sorriu o homem. “Não acredito porque ele não existe. Se existisse, para começo de conversa você não estaria nessa situação, já que acredita nele”. O homem, achando curiosa a revolta do jovem, sorriu novamente.
“Eu estou nessa situação, não por causa de Deus, mas por causa de pessoas. Eu mesmo incluso. Péssimas influências, más escolhas, sem muita oportunidade… esses são os motivos de eu estar aqui. Não Deus”. O jovem, enfático em sua opinião, continuou: “Mesmo assim, se seu deus existisse, ele lhe livraria dessa aflição toda. Mas não. Igual você, outros passam fome, crianças nascem com doenças terríveis, pessoas inocentes morrem em todo lugar… se seu deus existe, ele é um sádico pervertido”, ergueu a voz, por fim.
O homem apenas balançou a cabeça lentamente e disse: “Antes de eu estar na rua também não acreditava. Na verdade não me importava. Mas foi quando acabei nessa situação, observando a vida com calma, que comecei a ver Deus em todos. Do carinho de alguém, da bondade de outro, da comida… Porque sei que fui eu que me meti nessa vida aqui. Passo por essa situação por minha própria causa e de outras pessoas, porque somos livres para nos fazer mal, ainda que a vida me diga, como porta-voz de Deus, as coisas que preciso fazer para não me destruir. E é assim que Deus faz, respeitando nossa liberdade. Você estar aqui hoje é mérito de Deus”.
O jovem ficou visivelmente ofendido. “Não! O mérito é meu e de quem trabalhou para vir aqui hoje…”, o homem interrompeu: “é porque lhe falta conhecer a vida um pouco mais. Então vai entender que todo o mérito é de Deus, porque, no fim do dia, você é parte de Dele. Tudo é parte Dele. Uma flor não desabrocha se não pela vontade de Dele, porque Ele gera o mundo em direção ao bem. E você é parte disso. Somos nós que nos desviamos e causamos nosso próprio mal que, infelizmente, respinga na vida de todas as pessoas…”. O jovem, bravo, levantou-se e foi embora, indignado com a burrice daquele homem; mas o homem estava tranquilo consigo mesmo, e sentia pena do vazio do jovem revoltado.